sábado, 19 de dezembro de 2015

O Arco e a Lira - Fragmentos do livro de OCTAVIO PAZ


Há máquinas de rimar, mas não de poetizar. Por outro lado, há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia acontece como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta, estamos diante poético. Quando - passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo - o poeta é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na presença de algo radicalmente distinto: uma obra. Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega e se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia, se deixamos de concebê-lo como uma forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poema não é uma forma literária, mas o lugar do encontro entre a poesia e o homem. O poema é um organismo verbal que contém, suscita ou omite poesia. Forma e substância são a mesma coisa.

Mal desviamos os olhos do poético para fixá-los no poema aparece-nos a multiplicidade de formas que assume esse ser que pensávamos único. Como nos apoderarmos da poesia se cada poema se
Fotografia de Isabel Furini
mostra como algo diferente e irredutível? A ciência da literatura pretende reduzir a gêneros a vertiginosa pluralidade do poema. Por sua própria natureza, a pretensão padece de uma dupla insuficiência. Se reduzirmos a poesia a umas tantas formas - épicas, líricas, dramáticas -, o que faremos com os romances, os poemas em prosa e esses livros estranhos que se chamam Aurélia,Os cantos de Maldoror ou Nadja? Se aceitarmos todas as exceções e as formas intermediárias - decadentes, incultas ou proféticas -, a classificação se converterá num catálogo infinito.

Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fechada, a prosa tende a se manifestar como uma construção aberta e linear. Valéry comparou a prosa com a marcha e a poesia com a dança. Narrativa ou discurso, história ou demonstração, a prosa é um desfile, uma verdadeira teoria de ideias ou fatos. A figura geométrica que simboliza a prosa é a linha: reta, sinuosa, espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diante e com uma meta precisa. Daí que os arquétipos da prosa sejam o discurso e a narrativa, a especulação e a história. O poema, pelo contrário, apresenta-se como um círculo ou uma esfera - algo que se fecha sobre si mesmo, universo auto-suficiente no qual o fim é também um princípio que volta, se repete e se recria. E essa constante repetição e recriação não é senão o ritmo, maré que vai e que vem, que cai e se levanta. O caráter artificial da prosa se comprova cada vez que o prosador se abandona ao fluir do idioma. Tão logo se volta sobre seus passos, à maneira do poeta ou do músico, e se deixa seduzir pelas forças de atração e repulsa do idioma, viola as leis do pensamento racional e penetra no âmbito de ecos e correspondências do poema. Foi isso que ocorreu com boa parte do romance contemporâneo. O mesmo se pode afirmar de certos romances orientais, como Os contos de Genji, da Senhora Murasaki, ou o célebre romance chinês O sonho do aposento vermelho. A primeira lembra Proust, o autor que mais longe levou a ambiguidade do romance.

O ritmo é inseparável da frase, não é composto só de palavras soltas nem é só medida e quantidade silábica, acentos e pausas: é imagem e sentido. Ritmo, imagem e significado apresentam-se simultaneamente numa unidade indivisível e compacta: a frase poética, o verso. O metro, pelo contrário, é medida abstrata e independente da imagem. A única exigência do metro é que cada verso tenha as sílabas e os acentos requeridos. Tudo pode ser dito em hendecassílabos: uma fórmula de matemática, uma receita culinária, o cerco de Troia e uma sucessão de palavras desconexas. Pode-se inclusive prescindir da palavra; basta uma fileira de sílabas ou letras. Em si mesmo, o metro é medida vazia de sentido. O ritmo, pelo contrário, jamais se apresenta sozinho; não é medida mas conteúdo qualitativo e concreto. O metro nasce do ritmo e a ele retorna. No princípio, as fronteiras entre um e outro são confusas. Posteriormente, o metro se cristaliza em formas fixas. Instante de esplendor, mas também de paralisia. Isolado do fluxo e do refluxo da linguagem, o verso se transforma em medida sonora. Ao momento de acordo segue-se outro de imobilidade; depois, sobrevém a discórdia e no seio do poema se estabelece uma luta: a medida oprime a imagem ou esta rompe o cárcere e regressa à fala a fim de se recriar em novos ritmos. O metro é medida que tende a se separar da linguagem; o ritmo jamais se separa da fala porque é a própria fala. O metro é procedimento, maneira; o ritmo é temporalidade concreta. (...)

Octavio Paz - (1914 -1998) México. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1990.

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